quarta-feira, 10 de julho de 2013

TIANA (Gente) *

                                                     
                           



Sebastiana era uma baiana de seus 48 anos, bem negra, dentes branquinhos e perfeitos, sorriso .de alegria total. Mais para gorda, vestia saias rodadas e blusas bem largas embabadadas de uma alvura como nunca vi igual, que contrastava com sua pele bem preta e brilhante, lisinha como piso das casas das madames. Tinha quadris largos e rebolativos, seios fartos e saltantes, que pareciam não querer ficar escondidos dentro da blusa. As mãos grandes, de dedos longos terminados em unhas enormes, imaculadamente limpas e pintadas, sempre de esmalte branco, eram inquietas e carinhosas. Tinham nas costas o negrume de todo o resto do braço roliço, mas as palmas eram bem brancas... Limpas, e podem acreditar, cheirosas. 
Nunca vi suas coxas, mas imagino que deveriam ser fortes e musculosas como as canelas, e com certeza teriam a mesma cor de noite que o resto do conjunto. O destaque eram seus pés enormes ! Negros .em cima, branquinhos na sola... Unhas bem aparadas, também pintadas com esmalte branco e muito limpas. Aliás, aqueles pés eram tão limpos que não combinavam com a chão de terra e nem com o barraco de estuque. Sempre estavam calçados com chinelas de couro de solado grosso, que não tinham nada de bonitas, mas que protegiam bem. Quando ela andava, com seu gingado rítmico, as chinelas faziam a percussão, criando um batuque que combinava perfeitamente com aquela dança onde todo o corpo dela se deliciava e provocava gracejos românticos entre a “homarada”.
 Gostava de enfeitar a cabeça com flores artificiais, sempre bem vermelhas, mas normalmente usava turbante à moda africana, bem franjados, em que ela ajeitava as franjas sempre caindo pela testa abaixo, como que querendo imitar o cabelo liso das branquelas. E ao andar, balançava a cabeça talvez para que os fios das franjas, acompanhassem seu bailado.
Tiana, era assim que o morro inteiro a chamava, vendia cocadas e quindins para a favela, (naquele tempo era favela, com muito orgulho !!!) e não havia ali uma só pessoa que não tivesse provado, aprovado e se apaixonado pelos seus quitutes. Quem comia uma vez queria comer sempre mais e ela gozava .com os elogios que todos faziam. Ria, seu riso de alegria total, mostrava seus dentes lindos e perfeitos e piscava p’rá mim, uma piscada jabuticabosa, cumpliciosa e debochada. Ah ! Mas eu sabia porque... 


Mamãe, na tentativa de que eu aprendesse a arte dos doces, mandava que eu fosse ajudar Tiana no preparo das iguarias. E eu ia mesmo... Curiosa e esperta, eu ia mesmo !!! Lá, ela se sentava num pequeno banquinho e mandava que eu trouxesse para ela duas bacia de ágata vazias e duas jarras também de ágata. Uma com leite, e outra com água. Colocava uma bacia no chão e mandava que eu despejasse, primeiro leite, bem devagarinho, com que ela lavava as mãos. O leite ia caindo na bacia onde depois ela colocava os pés e os lavava carinhosamente. Após, mandava que eu colocasse aquela bacia sobre a mesa e trouxesse a outra para o chão. Repetia então o estranho ritual com a água. Enquanto lavava as mãos e os pés com o leite e a água, cantava umas cantigas estranhas que eu ouvia emocionada. Conseguia distinguir naquela língua estranha, palavras como Obatalá, Ai eu eu ! Oxum,    Xangô !, Oxalá !!!
 De vez em quando durante a cantilena, ela estalava os dedos, me rodeava a cabeça com sua mão miraculosa e suspirava fundo. Aí eu olhava para o seu rosto e via uma estranha . luz que a rodeava. Procurava pelos seus olhos e eles se mantinham cerrados solenemente e meu coração de criança respeitava tudo aquilo que existe entre nós e o céu, e que não podemos nem de longe,  imaginar. 
Depois de devidamente “lavada” de leite e água, Tiana secava os pés num pano de saco limpo e alvo como as suas roupas e começava a preparar as cocadas e os quindins usando aquela água e o leite das bacias ! Ria seu riso de alegria total, exibia seus dentes brancos e perfeitos e me contava histórias de sua mocidade lá na Bahia, de como viera para cá fugindo de um marido violento, (que mataram lá na Bahia mesmo, graças a Deus !), de como sofrera pelas ruas do Rio até construir aquele barraquinho no Borel que conseguira erguer com muito sacrifício e a ajuda da UTF ( União dos Trabalhadores Favelados) que também lhe dera o pedacinho de chão. 
Fiquei sabendo que ela fora obrigada a se prostituir para sobreviver e que se envergonhava deste período que agora era só uma lembrança ruim.
 Lá pelo comecinho da noite, ela tomava banho com sabão de lavar roupa, se perfumava com água de cheiro que ela mesma fazia e nunca quis me ensinar, vestia suas saias e anáguas brancas, pegava seus inúmeros cordões de contas coloridas e suas centenas de pulseiras no altar de santos que ficavam na salinha do barraco, enfeitava-se toda, amarrava seu turbante e saía para as vendas. Eu ia junto. 
Ao passarmos pelo portãozinho de madeira do barraco, ela abria uma pequena casinha de cachorro que ficava .colada à cerca e saudava a imagem de um capeta que estava lá dentro guardadinha. Eu, menina de catecismo ficava meio cismada, mas ela me olhava e dizia:

 __Se aquieta menina que .o diabo não é ruim, não. Me diga, quem criou todas as coisas ?
 E eu repondia meio sem graça:
__Deus, ué. 
__ Então, Ele também criou e cão e como Deus não faz nada ruim, né?... O cão é de Deus, fia. 
Tiana já se foi com sua beleza seus segredos e sua inocência.. Dela só ficou esta saudade.





                                                                 15.06.2013



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O trem da volta.