quinta-feira, 11 de julho de 2013

RECORDAÇÕES


                       
                 


        Hoje o dia tem a cara de Manhuaçú. Manhuaçú...Rio Grande no idioma Tupi.
        Parece-me ver a figura esguia da Vovó Chiquinha, vestida eternamente de cores escuras, em vestidos bem talhados por minha madrinha costureira, (nem lembro mais o nome), quase sempre com um detalhe no decote e sempre de meia manga, bem franzidinhas nos ombros.
        Suas "alpercatas" (calçados) de um azul marinho marcante, bem limpinhas, solado de sisal, às vezes dobradas no calcanhar para virar chinelinho caseiro, emitiam sempre um ruído arrastado, preguiçoso, como as tardes do verão mineiro.
        Meio queixuda, vovó Chiquinha tinha olhos pequeninos numa face miúda, lábios finos, nariz adunco, grandes orelhas, uma verruga arrematada por um fio de cabelo no queixo pontudo, tudo isto emoldurado por cabelos quase brancos, presos num coque, bem na nuca. Era sua "pituca"
       Alta, ereta, seios pequenos, sem barriga, longas pernas e grandes pés, 38 ou 39 talvez.
       Seus braços, longos também, terminavam em mãos bem femininas, dedos compridos, unhas escuras e palmas claras.
        Não sei se voces sabem, mas ela era quase negra. Se não me engano era "puri", uma raça de indios que vive ali pelos lados das Minas Gerais. Diziam que vovó tinha sido pêga à laço no  mato para se casar, mas eu já ouvi esta história, esta mesma história, referindo-se a outras mulheres, e por esse motivo eu tenho minhas  dúvidas. Não posso afirmar ser verdade.
       Era quase mágica... Contava "causos" de cangaceiros, de caçadores, de feras nos matos, de mães da lua", assobrações. Cantava, ou melhor, balbuciava modinhas que eu não conseguia entender (talvez cantos de sua tribo) e canções folclóricas de "bumba", "reizado", "congada".
        Ria, um riso bonito, pequeno, quase silencioso, onde eu admirava os pequeninos dentes da dentadura que  às vezes eu podia ver nas suas mãos e não na boca, e este fato me causava tal admiração e curiosidade, que meus olhos coçavam até doer.
        Chamava o Padrinho: "____ Chiiiiiiiiiiiico!!! Vem cumê, homi !"  Não almoçar, lanchar, jantar, mas "cumê". "Cumê" acumidinha quente, feita com banha de porco no fogão de lenha. Cumidinha misturada no prato esmaltado usando colher ou a própria mão. A farinha era indispensável quando se comia com a mão. Ela fabricava com seus dedos longos, gostosos bolinhos de comida que conhecíamos como "capitão" e trazia-os um a um até minha boquinha de criança, aberta, esperando que nem bico de passarinho.
       Alimentava minha gulodice e sorria seu sorriso manso, me olhando com carinho.
       A tardinha, quando havia bom tempo, trazia a cadeira para a frente da casinha humilde. Dali avistávamos a Igreja.
       Com sua voz pausada, vovó falava comigo, coisas que não consigo lembrar. Tocava-me de vez em quando com jeitinho e eu recordo seu toque gelado nas pontas dos dedos, o  e o calor gostoso das palmas.
       Quando o sino da matriz badalava as 18 horas, fazia o Sinal da Cruz e recitava a Ave Maria com solene amor. Dizia que o Padre a estava chamando para as orações da tarde.
        Vovó morreu aqui no Rio. De tuberculose ? Não sei...
         Feito passarinho, carregado na gaiola, tinha saído de seu paraíso acompanhando mamãe.
         Ela, sem o Padrinho Chico, que morrera numa esteira, deitado no quintal, fazendo a sesta, numa tarde bonita e morna. Lembro vagamente do velório, porque não deixavam que as crianças tivessem contacto com a morte. Lembro muito da ausência, das desculpas, e de uma estrelinha lá no céu que se tornara a casa dele.
        Mamãe, sem vovó Manega que morrera estraçalhada por um trem em Tres Rios.
        Solidão com solidão, arrastadas pela ignorância e machismo de meu pai, duas mulheres da roça, num universo agressivo chamado Rio de Janeiro.
        Lembro as mãos da Vovó Chiquinha ,crispando-se sobre o Crucifixo do Terço e a voz da mamãe:
___Sonia, vai na Elza do Zé, pede uma vela a ela que vovó tá morrendo.
        Fui num salto !!! A Elza não tinha uma vela inteira... Deu-me um pedaço... Quanta miséria, meu Deus!
        A luz foi acesa diante daqueles olhos nevoentos. Mão, terço e vela misturavam-se ao Pai Nosso de vozes sofridas e submissas, inertes diante do inevitável.
        Tão longe de sua terra... Tão triste. Sua malinha sob a cama, suas riquezas no chão. Ali estava tudo o que aquela grande mulher tinha de material. O importante mesmo se fechava com a morte, em seu coração e se chamava AMOR.
       Mulher simples. Honesta. Limpa.
        Deixava o mundo da mesma forma com que veio a êle: anônima.
        Não vi enterro. Dizem que seu corpo saiu no "rebecão" e foi enterrada como indigente. Eramos muito pobres... Muito pobres mesmo. Nem uma sepultura digna tivemos condições de lhe dar, mas isto não importa... Sei que sua alma livre, voltou a Minas Gerais, reviu tudo que amara e depois partiu para se unir aos seus queridos que a esperavam no céu.
        Hoje, as tres mulheres que representam a força da nossa família estão juntas: Vovó Chiquinha, Vovó Manega e Mamãe.
        O Valdê e a Valda também já estão com elas, matando as saudades, abraçando a Do Carmo, Sandra, Geraldo de Cássio, Sebastião, Valdecy e Valdemar.
        Nós aqui ficamos relembrando o passado e aguardando o futuro. Que futuro ???
        Aqui ficam minhas saudades de Francisca Perciliana de Jesus.









                                                               novembro de 2005

                                                           

 

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O trem da volta.